De uma vida de retalhos, o coração remendado

Dona Ana me recebeu estendendo a mão esquerda. “Êta, essa mão é difícil de esquentar!”, dizia ela. A palma da mão enrugada e calejada já apresentava uma prévia das tantas histórias que aquela mulher franzina escondia. Sentada na ponta de um dos bancos de madeira do condomínio onde vive há quatro anos, ela buscava acalentar a mão sob o sol daquela tarde de quarta-feira. Se escondia em um chapéu cata-ovo branco e uma jaqueta de mesma cor. Nos pés, meias e chinelo de dedo. Olhava por cima do óculos de grau, “presente” que ganhou dos tantos anos em frente à máquina de costura, equipamento principal para a profissão de uma vida inteira.

– Dona Ana, também me chamo Ana.

Ela sorriu, daqueles sorrisos que fecham os olhos. “Somos charás!”, disse. E então me contou da cirurgia que fez no último mês – a falta de ar que sentia, observou surpresa, não era do pulmão enfraquecido, mas do coração que estava parando. Dona Ana ficou horrorizada com a possibilidade de o coração parar de bater. “Mas Deus disse: fica quietinha aí que a sua hora ainda não chegou”. O mesmo Deus que habitava a casinha de quase 50 metros quadrados onde vive. “Não moro sozinha não. Moro com Deus”. 

A mulher de estatura pequena, frágil, foi mulher de garra por toda a vida. Criou cinco filhos na roça – “todos casados e trabalhadores”, orgulha-se – e hoje tem tantos netos que mal consegue contar nos dedos das mãos. Dos bisnetos é que ela lembra com doçura: são seis. Recorda com vivacidade dos tempos em que colhia café, corria para casa fazer o almoço para o marido, hoje falecido, e as crianças. Voltava para o batente. Retornava no entardecer, ajeitava as crias e assentava-se na máquina de costura, onde ali encerrava a noite. Poucas horas de sono não davam conta de acalmar a alma de quem se dividia em tantas. Quantas Anas caberiam no semblante tão sereno?

Ana da Cruz, 81 anos, passou a vida inteira juntando retalhos. Hoje tem o coração remendado. Tão grande o coração que transbordou, esqueceram de lhe contar. A mão agora já está aquecida e o sorriso acalenta o ritmo acelerado de qualquer um que sossega ao lado para ouvir. Da voz sussurrada ela expõe um mundo inteiro de vivências. As rugas contornam o sorriso dos olhos, como se atestassem cada palavra ali proferida. Ela fala agora sem precisar de muitas indagações. Da vida não quer mais nada se não saúde. “Que eu preciso dar uma arribada!”.

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