De outro ângulo

Era a praça mal falada da cidade. Gente que pisa ali não tem caráter não, ouvi dizer. Mas o objetivo era nobre, ou ao menos parecia ser. Encaramos um cadeirante, um travesti e um senhor vendendo bala – nos recepcionaram com certo receio. Há muitos comentários que os descrevem como animais, e era aquilo que realmente pareciam: animais com medo do que não se conhecia, como se estivessem acostumados a serem chutados a cada aproximação qualquer.

Uma mulher, visivelmente dopada, dissera que para falar da vida era mais fácil comprar um caderno “daqueles bem grandes” e escrever, escrever e escrever, sem parar, sem fôlego. Nosso objetivo era usar a voz, a imagem. Quando o senhor pediu para que eu sentasse ao lado. Perguntou meu nome, não disse o dele. Questionou “Por que nós? Por que não algo mais bonito? Tem tanta coisa para falar aqui na cidade”, proferiu, quase num choro.

Tinha o corpo parcialmente travado, derrame – disse. Eu tremia, claro. Era hipócrita de achar que, apesar de doentes – e o eram – eram inofensivos e que isso seria o suficiente para deixar os bens, que nem eram meus, intactos na mochila que carregava. Mas a lição fora maior. Expliquei o motivo de mostrar o outro lado da moeda, do vício, das dificuldades e talvez falar da vida. Porque ainda viveriam o suficiente para escolher o caminho da recuperação – se a força de vontade não falhasse.

Tinha um crucifixo de madeira ao pescoço, uma sacola verde com balas de banana, uva, morango e maçã verde. O olhar melancólico, a pele morena e um boné na cabeça. Aparentava ter uns 56 anos – talvez tivesse menos, não saberia dizer. Começou um discurso aonde repetia as palavras a cada frase concluída, num devaneio trancafiado na própria memória – ali, escarrado, compartilhado. Dissera que era estudado, que podia ter ido para outro caminho. O pai, tarde da noite, ainda acendia vela para escrever – isso há muito tempo. A mão suja de carvão, de tinta preta. Inebriando o futuro dele e do irmão – que não sabia onde estava.

“Você quer falar sobre nós, né? E não vai sair daqui enquanto não falar?”, abria o braço bom, mostrando os cinco moradores de rua próximos, entretidos com meu colega de grupo, tentando convencer alguma boa alma a falar – e que não cobrasse o valor de uma pedra para proferir alguma coisa. “Ana, não é? Você pode ir além disso. Observe, com calma. Olhe a sua volta. O que você vê? O que você sente? É isso que importa. O que você sente. Se quiser ficar, se aproximar, ouvir e principalmente observar, faça isso. E depois escreva tudo o que viu. É melhor que qualquer coisa que as pessoas possam falar”.

Fiquei travada. Não sabia o que pensar, saberia que em algum dia essa história derraparia novamente na lembrança e eu teria de registrá-la, talvez como forma de gratidão. Mais pessoas se aproximavam, curiosos, queriam saber o que aqueles dois faziam ali, aparentemente deslocados e sem jeito. Até que duas moças da prefeitura chegaram, convidando-os a integrar uma atividade noturna – sopão, talvez. Andando aos poucos me afastava, buscando o rumo de casa, sem um rumo certo. Ainda carregava a mochila, intacta. Sem imagens, é verdade. Mas com registros na memória. E com aquela sensação que não saberia explicar tão cedo.

Era só questão de… Olhar ao lado. E observar.