Fome de quê?

Eu jurei juradinho dia desses que iria retomar as postagens no blog com mais frequência. Eu escrevo todos os dias. Não raro, escrevo muito. Muito mesmo. Mas o jornalismo me deixa a responsabilidade de manter a objetividade. E eu queria tirar a poeira de uma criatividade que já tive em abundância. Hoje está um tanto de lado, segundo plano. Era mais efervescente quando estava na faculdade, eu imagino. Quando trocava o dia pela noite e as madrugadas me reservavam textos e personagens escondidos em cada dobrinha do cérebro.

Queria retomar a criação de personagens fictícios. Mas é que a realidade muitas vezes estica o pé para você tropeçar. Para parar e pensar, talvez. Enfim, na sexta-feira um sujeito me chamou a atenção. Já tinha dado alguns passos adiante quando nos cruzamos na avenida e só então ele chamou.

– Moça, ô moça!

Parei e voltei um pouco o trajeto. O encarei nos olhos. Ele ficou visivelmente constrangido, como se tivesse infringido algum limite invisível. Alguns dentes resistiam na boca, cada olho apontava para uma direção. Os cabelos eram ralos e a pele macilenta.

– Não fica com medo, por favor. Eu não vou fazer nada. É que eu tenho um problema – Levantou a mão direita, que segurava uma moeda – Eu só tenho R$ 0,50 e com isso eu não compro comida. Eu tenho fome.

Para variar correndo contra o tempo, revirei a bolsa rapidamente e lhe dei uma nota de R$ 2 que achei perdida, fora da carteira.

– É o que eu tenho agora, moço.
– E eu só precisava de mais R$ 0,70 que já resolvia o meu problema. – disse, sentindo-se de certa forma com sorte.
Pegou o dinheiro com as mãos de unhas contornadas pela sujeira, agradeceu com aqueles olhos de Olho-Tonto-Moody e desatou a subir a avenida. Não consegui não pensar nesse encontro com mais cara de desencontro de sexta-feira. Porque o problema do sujeito, que na falta de impulso nem perguntei o nome, era cinquenta centavos.

Aparentemente ele não tinha emprego. Não tinha casa. Fragmentou os problemas para evitar a loucura e aparentemente resolveu que encararia um problema de cada vez para vencer o dia: primeiro, lidar com a fome.

Eu esperei, até chegar no meu trabalho, que a fome fosse realmente de comida e não de entorpecente. Que ele encarasse um problema de cada vez como havia imaginado, e não estendesse as mãos para se livrar de uma realidade que não mais lhe pertence. Mas o “eu tenho fome” pode representar tanto ali. Ele tinha fome de quê? Naquele dia, se o problema fosse uma moeda e a solução para os problemas fossem mais R$ 0,70, ele teve um lucro de R$ 0,80. Moedas que lhe deram o direito de sorrir, mesmo que sem o auxílio dos dentes.

Aquele breve instante me atingiu com uma lição imprescindível para quem vive correndo contra o tempo: uma coisa de cada vez. Fragmentar para completar o todo. O que fez aquele homem que tinha medo de despertar o medo nos outros escalar a montanha de orgulho para estender a mão, pausar o tempo por uma fração de segundos do outro, e clamar por uns trocados? E como num passe mais de realidade que de mágica, reduzi meus problemas a nada. Eu tenho fome de quê?